Fernando despertou a meio da noite com um cheiro forte a álcool
etílico. Assim que abriu os olhos, viu o vulto da mulher ao lado da cama, em pé
e com um isqueiro na mão. Preparava-se para lhe atear fogo. Mais de um ano
depois, o juiz ouviu a história, mas de nada serviu. Ninguém acreditou nele e
Fernando acabou condenado a três anos de cadeia, com pena suspensa, por um crime
de violência doméstica.
Alexandre teve mais sorte. Conseguiu provar as agressões físicas e
psicológicas a que foi sujeito durante quatro anos. A juíza admitiu, no final
da leitura da sentença, que era a primeira vez, em muitos anos de carreira, que
condenava uma mulher por violência doméstica. Filomena apanhou dois anos e meio
de cadeia, com pena suspensa, e terá de pagar uma indemnização ao
ex-companheiro. Mesmo assim, Alexandre ficou sem a filha: a guarda de Renata
foi entregue à mãe.
Se a violência doméstica deixou de ser tabu na sociedade, quando as
vítimas são os homens os casos raramente vêm a público. Em 20% das situações de
violência conjugal, as agressoras são elas, embora raramente sejam julgadas e
quase nunca condenadas. Desde logo, explica o psicológico forense Mauro
Paulino, porque a maioria dos homens prefere esconder que sofre maus-tratos em
casa, por vergonha e culpa da pressão social: “A nossa cultura ainda incentiva
a ideia de que o homem deve ser soberano na relação.” E os que denunciam nem
sempre são levados a sério: “Acabam por ser olhados com desconfiança, porque
alguns agressores tentam fazer-se passar por vítimas.”
Numa das vezes em que Fernando foi apresentar queixa à PSP, um
agente chegou a dizer-lhe que desistisse: “Esqueça, você nunca vai conseguir
provar nada porque ela é a mulher”. Outro polícia sugeriu-lhe que, para acabar
com o inferno, “a esperasse numa esquina e lhe desse uma lição”. E quando
Alexandre foi pedir ajuda a uma das associações de protecção de vítimas,
ninguém quis tomar nota do caso. Mais tarde, quando a mulher apresentou uma
queixa falsa por violência doméstica, a mesma associação encaminhou-a imediatamente
para uma casa-abrigo. “Onde continuou a viver mesmo depois de já ter sido
condenada por me ter agredido”, conta Alexandre.
Se para um homem já é difícil assumir que apanha da mulher, o
processo complica-se na hora de levar a queixa adiante na polícia e nos
tribunais. “O sistema é demasiado feminilizado”, admite Mauro Paulino. Além
disso, a violência exercida pelas mulheres é diferente da cometida pelos
homens: “Enquanto que a violência doméstica ‘tradicional’ assenta muito nas
agressões físicas, que são mais fáceis de provar, a violência das mulheres é
psicológica, subtil e continuada.”
De vítima a condenado Fernando viveu quase quatro anos debaixo do
mesmo tecto que a mulher que o agredia. Conheceu-a na internet quando vivia em
França, acabado de sair de um divórcio. Ela estava em Portugal e também tinha
acabado uma relação há pouco tempo. “Na altura, estava destroçada, com uma
depressão enorme e a fazer medicação psiquiátrica”, recorda Fernando. Só se
conheceram pessoalmente meses depois, quando ele veio de férias à terra. Gostou
dela e como a viu tão em baixo, convidou-a para passar duas semanas em Paris.
Pagou-lhe as viagens de avião e preparou-lhe um quarto em casa.
Acabaram a dormir juntos na primeira noite e, passadas as duas
semanas, ela anunciou que ia tirar uma licença sem vencimento: queria ficar
mais uns tempos em França. Um mês depois, estava grávida. Ela queria abortar,
dizia que a diferença de idades entre os dois era “incomportável” – ele tinha
60 anos e ela 31 – e que, além disso, seria “má mãe”. Pierre acabou por nascer
e ela só falava em voltar para Portugal. “Dizia que tinha um emprego bom, que
não fazia sentido continuar em França e que o melhor seria eu ficar com o
menino em Paris”, conta Fernando que, na altura, estava a três anos da reforma
e não queria ser penalizado por deixar o trabalho antes do tempo.Mesmo assim,
despediu-se. Comprou uma casa em Portugal e mudaram-se para Évora.
“Depois de o menino nascer ela tornou-se muito agressiva, mas eu
achava que era por se sentir infeliz em França, longe da família.” Mas a
mudança só veio piorar a relação. “No início eram as agressões verbais. Quando
eu chegava a casa, ela dizia coisas do género: “aí vem o velho” ou “não há
maneira deste velho me sair do caminho”, recorda Fernando. Todos os dias havia
gritos. “Exaltava-se muito, gritava, chamava-me nomes do nada, dentro e fora de
casa”. Mas os “ataques de fúria” duravam pouco. “Passado meia hora ela voltava
ao normal e eu tentava levar aquilo com calma por causa do menino.”
Até que um dia ela falou em divórcio. Disse que não queria viver
mais com ele e rematou a conversa: “Tu estás velho. És um velho que não serve
para nada.” Na altura, Fernando já falava em pôr a casa em nome de Pierre –
para o colocar em pé de igualdade com os filhos do primeiro casamento, a quem
tinha oferecido um apartamento. Meses depois, a escritura foi alterada, mas
para o nome dela e, a partir desse dia, o verdadeiro inferno começou. “Nunca
mais me voltou a deixar dormir, as agressões eram constantes e cheguei a ir
parar ao hospital com a tensão a 18/22, à beira de um AVC”. Numa noite,
entrou-lhe pelo quarto a dentro com um frasco de álcool etílico e um isqueiro
na mão, determinada a deitar-lhe fogo. Escondia-lhe objectos de propósito para
o irritar e um serão, à frente do filho, agarrou numa faca de cozinha para o
atacar. Foi aí que Fernando pediu ajuda à PSP pela primeira vez. O agente que o
atendeu esboçou um sorriso quando ouviu a história. “O senhor está a duvidar de
mim?”, perguntou Fernando. A queixa acabou por ficar registada na polícia e,
uns tempos depois, decidiu procurar ajuda junto de uma conhecida associação de
apoio a vítimas. “Havia um desinteresse muito grande em relação ao meu caso e,
mais tarde, vim a saber que nem sequer registaram o pedido de apoio por
escrito”. A sensibilidade dos advogados não era maior.
Fernando teve quatro. “Eram oficiosos e não se interessavam. Um
chegou a dizer-me que não tinha tempo para falar comigo porque recebia pouco do
Estado”. Em todas as instituições, a desconfiança era evidente: “Toda a gente
olhava para mim, permanentemente, como se a culpa fosse minha e fosse tudo
inventado”.
Em casa, as agressões continuavam. “Eu nunca reagia, tentava não
perder a cabeça por causa do menino e porque desconfiava que se lhe batesse
seria muito pior”. Até que um dia perdeu a paciência e quando ela lhe tentou
dar murros no peito, ele agarrou-a pelos braços, encostou-a a uma parede e
disse-lhe: “Tu nunca mais me vais voltar a conseguir bater”. Nem duas horas
depois, ela já estava no hospital, com os braços marcados e a contar como era
vítima de violência doméstica. Ele já tinha apresentado queixa antes, mas o
processo foi arquivado por falta de testemunhas. Já a dela avançou rapidamente.
Acusou-o de agressões, de tentativas de homicídio, de roubo, de a empurrar de
escadas. Uma noite, quando o caso já estava em tribunal e depois de ela se ter
mudado para casa da mãe, Fernando acordou com um estrondo na rua. Quando foi à
janela ainda viu o carro dela a arrancar a grande velocidade: tinha acabado de
lhe partir o pára-brisas do carro.
Fernando foi julgado por violência doméstica e a mulher encaminhada
para uma casa-abrigo com Pierre. “Durante oito meses não soube do paradeiro do
meu filho e ninguém me deixava vê-lo.” O divórcio saiu em 2010 e Fernando
acabou condenado a três anos de cadeia com pena suspensa. Pierre tem agora 11
anos e vive com a mãe. Está com o pai aos fins-de-semana e nas férias escolares
e, aos poucos, vai recuperando a confiança em Fernando: “Quando era mais pequeno
achava que eu queria matar a mãe. Foi um processo muito difícil e espero que um
dia, quando ele for adulto, consiga compreender o que se passou”.
Quando elas são condenadas Alexandre esteve quase a ser condenado
por violência doméstica e a mulher também viveu numa casa-abrigo. Mas a
história sofreu uma reviravolta e Filomena é das poucas mulheres condenadas, em
Portugal, por violência doméstica. Foi uma juíza quem ditou a sentença: dois
anos e meio de prisão, com pena suspensa, e o pagamento de uma indemnização
pelos danos que causou ao ex-companheiro.
A PSP foi fundamental para que a verdade viesse ao de cima.
Alexandre saiu de casa, num serão, com a camisola rasgada e o peito
ensanguentado. Ela tinha voltado a bater-lhe. “Mordia-me, arranhava-me até fazer
sangue e dava-me murros na cara com as chaves de casa”. Entrou no café do
prédio e pediu aos donos que chamassem a polícia. Acalmou-se e voltou a entrar
em casa para se certificar de que a filha, ainda bebé, estava bem. A mulher
escondeu-se atrás da porta de casa e, quando ele entrou, espetou-lhe as chaves
nos olhos. Seguiu-se uma discussão na cozinha. “Ela gritava, dizia que eu não
servia para nada, que não era homem, que devia sair de casa e nunca mais
voltar, que devia era morrer”. Os gritos chegavam à entrada do prédio e os
agentes da PSP ouviram a conversa. “Quando entraram em casa, ela parou de
gritar e começou a chorar e a dizer que eu estava a agredi-la e a gritar com
ela.”. Um dos polícias disse-lhe logo: “Escusa de estar com isso, minha senhora,
nós ouvimos tudo”.
O episódio foi determinante para que Alexandre conseguisse provar
ao tribunal que era a vítima e não o agressor – como a mulher tentava fazer
crer nas várias queixas falsas por violência doméstica que lhe moveu, foram
precisos três anos de agressões até que Alexandre decidisse falar. E só
denunciou a mulher por ter medo de perder o autocontrolo. “Pode ser difícil de
acreditar, mas em três anos nunca, mas nunca lhe bati, nem para me defender. Na
noite em que fui à esquadra senti que já não aguentava mais controlar-me. A
raiva e o desespero eram tão grandes que ia acabar por lhe bater”. Nessa noite,
com a cara e o peito arranhados e em sangue, contou tudo. Como ela ameaçava
fugir com a filha sempre que ele não lhe dava o que ela queria. Como ela
ameaçava destruir-lhe a carreira. Como o chantageava para que ele lhe desse os
cartões de crédito e como ela se endividara em milhares de euros em lojas de
roupa. Como ela lhe batia. Como o acordava a meio da noite, no sofá, com baldes
de água fria. Como lhe atirava as panelas ao chão e a comida ao lixo, todos os
dias, quando ele tentava fazer o jantar para a filha. Como lhe chamava de
“palhaço”, “cabrão”, “cornudo”. Como chorou no dia em que a filha de três anos
lhe disse: “Pai, quando ela voltar a fazer-te mal, tu bate-lhe também”.
Foi a primeira de muitas queixas que não deram em nada. Era preciso
provas e passaram-se meses. “Saía do trabalho, ia a casa, fazia o jantar para a
minha filha, dava-lhe a comida e o banho, deitava-a e depois ia para o carro
até serem duas, três da manhã para garantir que quando regressasse a casa ela
já estivesse a dormir e não me ia atazanar.”
A seguir ao episódio da PSP e da discussão em casa, Alexandre
conseguiu avançar para tribunal. Enquanto isso, a mulher foi a uma associação
queixar-se de que era vítima de violência doméstica e o caso também seguiu para
julgamento. Um e outro eram simultaneamente arguidos e assistentes. Ela
queixava-se de que ele a “apalpava”, que nunca estava em casa, que ele lhe
partia os móveis e os perfumes. Entretanto, e com a ajuda da associação, ela
saiu de casa e levou a filha. Mudaram-se para uma casa-abrigo, com uma morada
secreta. Alexandre ficou meses sem ver a filha e sem saber onde estava.
Deixou de dormir e de comer. “Até ao limite fui sempre encarado
como o agressor”, conta.
Filomena foi condenada em 2013 e Alexandre acabou absolvido. Passou
a poder ver a filha de 15 em 15 dias. Mesmo assim, ela continuou a viver na
casa-abrigo e a menina era entregue ao pai por funcionários da instituição.
Renata ainda continua, aliás, a viver com a mãe. Alexandre faz 150 quilómetros
para a poder visitar e Filomena vive agora num apartamento com uma renda mais
baixa – um apoio a que tem direito graças à associação a que recorreu.
Os nomes usados são fictícios, a pedido dos intervenientes
Fonte: Jornal i (Maio 2015)
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