14 de junho de 2015

A violência teve-as reféns, mas na casa abrigo a escola torna cada dia uma vitória


A violência doméstica tornou-as reféns da sua própria vida, mas na casa de abrigo têm aulas, ganham novas competências e isso aumenta-lhes a autoestima, tal como aconteceu com Maria, para quem todos os dias são uma vitória.
Maria, nome fictício, chegou à casa de abrigo em novembro do ano passado, com os filhos, depois de "muitos anos de violência". No princípio da relação, que durou oito anos, foram empurrões, ameaças, ao mesmo tempo que ele a fazia sentir-se uma pessoa incapaz.
Nos últimos quatro anos a agressividade do companheiro piorou. Batia-lhe com a cabeça na parede, não queria vê-la com mais ninguém, nem com amigos, e dizia que ela era uma "oferecida".
Hoje sente-se "segura" e "livre", mas ainda tem medo. Medo pela família, que vive próxima do agressor, e medo por ela, que ainda tem a "sensação que parece que ele ainda está aí".
Entretanto, desde março, começou a ter aulas, ao abrigo do projeto "A Escola vai à Casa Abrigo", uma iniciativa do atual Governo que visa aumentar a aquisição de competências das mulheres vítimas de violência doméstica.
"Estamos a falar de competências ao nível da escrita, da leitura, que podem ser bastante úteis na procura de um emprego, na preparação de um currículo, mas também para trabalhar competências que, apesar de escolares, são também úteis à organização da sua vida", explica o coordenador clínico da casa de abrigo que a Lusa visitou.
Mauro Paulino lembra que é estratégia de muitos dos agressores isolarem socialmente a vítima, o que tem como consequência que estas mulheres cheguem às casas de abrigo sem competências, seja ao nível dos estudos ou do trabalho.
"Foram reféns da sua própria vida", aponta, lembrando que muitas tinham que ficar em casa a cuidar dos filhos ou tinham companheiros que, pelos "ciúmes excessivos", não as deixavam sair de casa.
A professora Maria Filomena Galvão é quem, na prática, leva a escola à casa de abrigo e tenta que estas mulheres tenham mais formação ou relembrem a formação que tinham.
Segundo Maria Filomena, as dificuldades das várias mulheres são díspares e tanto já ensinou uma portuguesa com o 12.º ano, como uma estrangeira que tinha muitas dificuldades no português e nas contas básicas ou outras "que não têm sequer o nível [de ensino] básico concluído".
"Tento fazer-lhes ver que aquilo que lhes trago, por muito pouco, é sempre uma contribuição para que elas se sintam mais à vontade e (...) se sintam mais confiantes para poderem viver o seu dia-a-dia e enfrentar o mercado de trabalho, por exemplo", conta a professora.
Nas aulas, as matérias dadas vão do inglês, à informática, passando pelo português, mas também se ensina a procurar emprego, a elaborar um currículo ou escrever uma carta de apresentação.
"A minha vitória aqui é todos os dias porque para além de ser uma professora (...) também é uma amiga, uma amiga com quem vamos falando, a quem vamos contando um bocado as nossas preocupações do dia-a-dia e ela vai-nos mostrando que mesmo com o simples português ou simples matemática, nós não somos assim tão burrinhas ou tão inúteis como pensava", aponta Maria.
Mauro Paulino sublinha mesmo que esta aquisição de competências não só traz a estas mulheres um "impacto de autoestima", em que se tornam mais aptas a resolver as questões do dia-a-dia, como ajuda a neutralizar as crenças que banalizam os processos de violência doméstica.
"Ficam mais capazes para reconhecer sinais que denunciam novas situações de violência doméstica, até porque na relação com a professora acabam por reconhecer um novo modelo de relação, com outras referências que acabam por absorver, o que também é positivo para a autonomia dessas senhoras", explica.
Maria sonha agora com um emprego, terminar o 12.º ano, conseguir acompanhar os filhos na escola, mas deixou de idealizar muito porque quando as coisas não correm como quer, desmoraliza.
"Já não sonho. Sonhei muito e muitas vezes caí, agora é aos poucos", diz.
O projeto "A Escola vai à Casa Abrigo" arrancou em janeiro de 2015 e foi implementado em 14 casas de abrigo, em sete distritos do país, ainda em formato piloto.
Estão atualmente 82 mulheres a beneficiar desta formação, para a qual foram selecionados 21 professores.

Por Susana Venceslau (texto) e Pedro Martins (imagem), da agência Lusa


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