Na
realidade, nunca se poderá desconsiderar a importância do treino. Através dele, estás a aproximar-te o mais possível da situação que queres evitar – um
confronto físico. Parece um contrassenso: expões-te precisamente à situação
que queres evitar... Mas, na realidade, trata-se de uma "vacina" – através dessa
exposição, obtêm-se "anticorpos", na forma de uma dessensibilização ao stress e
medo inerentes, e uma acumulação de conhecimentos e reflexos cuja aplicação
prática será extremamente útil.
Assim,
quando realmente te vires nas situações reais para que treinas-te, a tua
reação será muito mais estruturada e organizada; de facto, um dos mecanismos
psicológicos humanos é o que nos faz reagir de forma adequada apenas ao que
conhecemos e experimentámos (chamasse acumulação de experiências), de contrário
podemos fazê-lo de forma ineficaz, ou até "congelar", isto é, imobilizarmo-nos
e não fazer nada, como um animal no meio da estrada, sob a luz dos faróis de um carro. E todos sabemos o que lhe acontece depois...
É muito
conveniente possuir experiência de ser assaltado (!!!). É por isso que convém
treinar realisticamente. (Treino baseado na realidade!) Claro que, para isso, não vamos expor-nos ao
acontecimento real, mas sim adotar um treino que nos coloque o mais possível
em situações tão próximas quanto se consiga do acontecimento real.
Todos
conhecemos aqueles "cursos" em que os praticantes treinam ataques e defesas
estilizadas, sempre os mesmos, até ficar muito hábeis em executá-los. Um treino
deste tipo é perigoso, por diversas razões. Em primeiro lugar, porque nos dá
uma falsa confiança: se passamos meses ou anos a treinar, e se conseguimos
executar o que o professor quer de nós, é lógico supor que estamos preparados
para nos "defender". Em segundo, porque nos inculca um comportamento mecânico
que, como não corresponde ao que vamos encontrar na rua, nos coloca em perigo.
A prova
disso é que, quando estamos a "treinar" uma técnica de, por exemplo, defesa
contra um soco da direita e inesperadamente atacamos o adversário com uma
esquerda ou um pontapé, ele fica todo baralhado (e até somos por vezes
recriminados por ele ou pelo "mestre" por estarmos a "fazer batota" ou a "não
dar a devida atenção ao treino"!!!). Na rua não há o conceito de batota – o
adversário fará de certeza TUDO para vencer. Sem regras.
Na
realidade, procederemos como treinamos. Tudo o que fazemos repetidamente
durante o treino nos condiciona, até o executarmos sem pensar. E é aqui que
surge o problema: se o treino é real e sensato, isso é bom; se não, isso é
muito, muito mau. Se treinamos com um professor que acha que o melhor do mundo
é o karaté (ou o judo, ou o aikidô ou o kung-fu, ou etc., etc), com exclusão de
tudo o mais, ou que é partidário de treinar contra situações predeterminadas,
mais tarde ou mais cedo vamos ter problemas.
Não me
interpretem mal – tudo depende do nosso objetivo. Qualquer destas artes
marciais não é má só por si; de facto, qualquer delas constitui um importante
instrumento de condicionamento físico, bem-estar físico e mental e sã
convivência e divertimento. Mas, como são praticadas numa ótica desportiva
(altamente codificadas, com regras de etiqueta, comportamento e segurança), é
isso que fica gravado na nossa memória muscular. E ninguém quer fazer vénias a
um assaltante que nos ataca com os punhos ou uma navalha, ou hesitar em bater
porque está habituado a controlar os seus golpes (para não magoar o parceiro)
ou tentar golpear pontos pouco sensíveis (porque os pontos vitais são proibidos
em competição), pois não?
Talvez até
mais do que o corpo, devemos treinar a mente para reagir de modo adequado,
senão estaremos a fazer o mesmo que outros métodos: aprendendo apenas técnicas para
situações específicas, em vez de aprender princípios que podem ser aplicados a
qualquer situação.
O primeiro
passo para obter o que se quer é fazer a pergunta: o que é que eu quero? Mesmo
antes de considerar os princípios ou valides dum sistema de autodefesa devemos
primeiro responder a esta questão. Qual é o objetivo que eu desejo ao adotar
este treino? É desta resposta que depende todo o nosso futuro nesta área, e até
o preço que estamos dispostos a pagar por isso.
E a resposta
deve ser: Eu treino autodefesa porque desejo aprender a lidar com ataques
físicos potencialmente letais provenientes de uma ou mais pessoas, com o fim de
preservar a minha integridade física e psicológica (e a de outros que
eventualmente me rodeiem).
Se o que
queres é competir dentro das artes marciais, acharás certamente muitas artes e
desportos de combate que te proporcionarão uma excelente instrução e
apaixonantes competições. Aí poderás, com segurança, comparar a tua habilidade
com a de outros competidores, dentro de regras acordadas internacionalmente e
sob a vigilância de juízes e árbitros.
Mas
compreende: as técnicas de autodefesa não te darão nada disto! Igualmente,
as artes marciais desportivas não te darão obrigatoriamente segurança na rua.
Claro que podes pensar: Mas será que não posso treinar para competição
desportiva e também para me defender? Infelizmente, a resposta é NÃO!!! A razão
para isto é que... atuas como treinas – SEMPRE!!!
Se treinas num dojo/escola, com regras que te dizem uma e outra vez que não deves empregar
mais do que essa força nas técnicas, para manter a segurança perante o
parceiro, e que não podes sequer tentar atingir a sua cabeça, face ou genitais,
fica certo de que, quando o quiseres fazer, o automatismo adquirido durante o
treino irá restringir – e muito – a tua forma de combater, e irás reagir a
um ataque real, desencadeado por um criminoso, do modo como o fazes no ginásio,
restringido pelas regras. E, na rua, isso será fatal. Porque, bem vê, o agressor
não se comportará do mesmo modo: Essas regras só se aplicam a ti, porque
treinas-te desse modo. O teu agressor não terá restrição alguma!!!
Exemplos? Há
uns anos, nos EUA, foi aberto um inquérito (como é habitual) no prosseguimento
da morte de dois polícias num tiroteio. Durante esta investigação foram
revelados factos muito perturbantes.
A carreira
de tiro onde estes dois agentes faziam há anos a sua prática de tiro ao alvo
era comandada por um oficial altamente competente e muito exigente com os procedimentos
e limpeza das suas instalações. Por isso, e durante o tiro, os praticantes eram
obrigados a, ao abrir o tambor dos revólveres para retirar os cartuchos vazios
e recarregar, despejá-los na mão e guardá-los no bolso.
O problema é
que, numa situação real, os polícias devem vazar os cartuchos no chão enquanto
recarregam as armas, não se importando minimamente onde eles caiem. É mais
rápido. Claro (dirão vocês) que numa situação real estes dois profissionais
altamente treinados ultrapassariam este condicionamento e atuariam de modo
adequado?!
ERRADO!!!
Ambos os mortos tinham nas mãos e nos bolsos cartuchos vazios, exatamente como
lhes tinha sido gravado nas mentes durante o treino!!! Mesmo enfrentando uma
situação real, onde esses segundos extras talvez tivessem significado a
diferença entre a vida e a morte, não se conseguiram subtrair ao
condicionamento sofrido.
É por isto
que deves ser extremamente cuidadoso no modo como treinas fisicamente para
autodefesa. Há um processo de codificação que é "instalado" quando se treina, e
é esse processo que ultrapassa tudo, determinando as tuas reações
sob stress. Quando a adrenalina inunda o teu organismo e tu praticamente
deixas de pensar (ou pelo menos deixas de pensar normalmente, como o fazes quando
calmo), é este condicionamento que prevalece.
Por isso,
tem cuidado: assegura-te de que estás a treinar para as situações que te poderão aparecer na rua, não no ginásio!!! Pela tua saudinha.
Quanto mais
complicada for a situação mais simples deverá ser a técnica empregue, pois
nessas condições o teu cérebro só se lembrará das coisas mais básicas e
primitivas, não das mais sofisticadas.
Na China, um amigo observou uma equipa de kung fu Wu shu (os célebres Monges de Shaolin) treinar o seu
espetáculo. Para os que não sabem, Wu shu é uma arte marcial chinesa que é
apresentada em público, num espetáculo coreografado tão intrincada e
minuciosamente como o Lago dos Cisnes no Bolshoi! As lutas são muito elaboradas
e dá muito trabalho e prática montar um espetáculo convincente.
Eles tinham sido autorizados pelo Instrutor Chefe (ausente) a assistir ao treino, todos ocidentais e os monges (todos adolescentes entre os 13 e os vinte e poucos
anos) estavam excitados e propensos ao “show off”. Putos são putos em todos os
países do mundo, não é? E então observou-se uma coisa interessante: de todas as
vezes que alguém queria brincar, tudo o que tinha a fazer era executar um
movimento diferente do habitual, ou fora do seu lugar. Literalmente, estavas a ver uma cena que juraria ser uma luta mortal entre dois combatentes
superiores; os movimentos evoluíam, rápidos, fluentes, perigosos; de repente um
dos rapazes fazia algo fora do contexto, como dar uma leve bofetada no outro,
ou puxar-lhe o nariz, como nos Três Estarolas. E acabava tudo a rir, fazendo um
intervalo.
Só muito
mais tarde, depois de meses de treino, compreendemos que este era exatamente o
processo pelo qual a maior parte das artes marciais e desportos de combate são
ensinados, em especial quando o "ensino" é supostamente de defesa pessoal:
basicamente há alguns padrões que se memorizam para responder a vários ataques
coreografados. Memorizar estas respostas a ataques previstos até poderá
parecer bom. Mas o que vai acontecer quando alguém variar o ataque? A maior
parte dos estudantes congela ou atrapalha-se. Porquê? Porque nunca lhes
ensinaram realmente a lutar.
Basicamente
o que eles aprenderam foi a "dançar" e, enquanto tudo seguir a sua
"rotina", até pode resultar. Mas todos sabemos que as coisas nunca se passam
tal e qual as planeamos.
A luta não
deve ser diferente, quer estejamos num ginásio ou na rua, num combate mortal
com os nossos atacantes. A única diferença é que no ginásio tu não mutilas ou
matas o teu adversário, se bem que os movimentos sejam os mesmos (apenas a um
ritmo aceitável para o parceiro). Se, pelo contrário, estamos a operar de modo
a memorizar uma dada resposta a um ataque, isso é apenas um movimento de dança,
até um treino de coordenação, mas não uma luta!
Quando não
conhecemos esta diferença podemos facilmente cair na síndrome do
"agora-é-que-é-a-sério": é quando treinas com uma atitude mental de
brincadeira e fronteiras (não faço isso porque também não é preciso
exagerar...) e, ao enfrentar um ataque real iminente hesitas, pois o teu cérebro
não consegue aceitar o facto de que "agora aquilo é a sério" – não está
habituado a treinar assim! Como contraste temos o bem treinado lutador que
encara todo o processo como luta e procede: 1º - escolher os alvos; 2º -
atingi-los. A única diferença para ele é que, no primeiro caso (o treino) não
pode usar toda a sua força, no segundo pode. Isto acontece porque este lutador
nunca se vê como "treinando" – está sempre a lutar. Se compreendermos
e praticarmos este conceito estaremos sempre melhor preparados para as exigências de
uma situação de confronto.