A lei permite que denunciemos crimes, protegendo a nossa identidade para evitar represálias. Mas a denúncia anónima tem regras e consequências.
Entrou hoje em
vigor a nova lei que reforça a proteção dos denunciantes. Entendido como um
exercício de cidadania, o ato de denunciar está definido claramente na
legislação: significa relatar determinado facto sancionável por lei, perante
a entidade competente. Implica, por isso, contar o que sabe sobre o quê,
quem, quando, onde, como e porquê, mesmo que nem sempre se consiga dar resposta
a todas essas questões. Depois, aplica-se um cliché dos tempos modernos: é
deixar a justiça seguir o seu rumo.
A Nova Diretiva Europeia de
Proteção dos Denunciantes, na sequência da qual foi publicada a nova lei,
acentua a proteção dos denunciantes, anónimos ou não, que delatam infrações ou
atos criminosos no interior de organizações, públicas ou privadas. Obriga os
Estados-Membros a protegerem quem denunciar uma gama de irregularidades tão
vasta quanto as que se possam verificar no âmbito da defesa do consumidor; da
contratação pública; de serviços, produtos e mercados financeiros e na
prevenção do branqueamento de capitais e do financiamento do terrorismo; no que
respeita à segurança e à conformidade dos produtos; à segurança dos
transportes; à proteção do ambiente; à proteção contra radiações e segurança
nuclear; segurança dos alimentos para consumo humano e animal, saúde animal e
bem-estar animal; saúde pública; proteção da privacidade e dos dados pessoais e
segurança da rede e dos sistemas de informação; criminalidade violenta,
especialmente violenta e altamente organizada; e crimes económico-financeiros,
entre outros. No entanto, essa proteção fica limitada àqueles que denunciem
estas infrações na sua própria organização ou no seu ramo de atividade, o que é
realmente pouco, como veremos mais adiante.
A ideia de base de qualquer
denúncia é simples: para o Ministério Público poder desencadear um processo
criminal, precisa de saber que foi praticado um crime. Mas nem sempre toma
conhecimento disso por si ou através de outras autoridades. Daí que a
participação dos cidadãos em geral seja fundamental. Qualquer pessoa que tiver
notícia de um crime pode denunciá-lo ao Ministério
Público, a outra autoridade judiciária ou aos órgãos de polícia criminal. A
exceção pode ser um daqueles casos em que o crime depende, efetivamente, de
queixa, como, por exemplo, a ameaça (crime semipúblico), ou de acusação
particular, como, por exemplo, a difamação (crime particular).
Da denúncia à reação das
autoridades
O Ministério Público está em
condições, obtida a denúncia, de ordenar a abertura de um inquérito. Os
magistrados adotam um conjunto de diligências que visam investigar a existência
de um crime, determinar quem o cometeu e recolher provas, com vista à decisão
sobre a acusação.
Muitas vezes, o desenlace do
inquérito pode ser dececionante. De acordo com os números divulgados pelo
Ministério Público, cerca de 75% dos inquéritos são arquivados. As causas mais
frequentes para isso são diversas: inexistência de crime, desistência de queixa
por parte do ofendido (não é o caso quando se trata de crimes públicos) e
recolha de prova inconclusiva. Existe uma enorme possibilidade de a denúncia,
anónima ou não, não ter resultados. Mas o denunciante deve estar convicto de
que o que fez foi para o seu próprio bem e da comunidade. Não se deve deixar
deter por receio, mesmo que isso signifique optar pelo anonimato.
Para denunciar um crime, não
temos, forçosamente, de saber qual é o tipo de crime em causa, nem a identidade
do autor. Uma denúncia também não requer a constituição de advogado e é
gratuita.
Mas há outras situações em que a
denúncia é mesmo obrigatória. Qualquer funcionário de serviço público ou
equiparado que tenha conhecimento de crimes no âmbito do exercício das suas
funções, ou por causa delas, tem a obrigação de os denunciar, mesmo que os
agentes do crime não sejam conhecidos. Também nestes casos, o denunciante tem
direito ao anonimato, a garantias de transferência a pedido e a proteção contra
eventuais sanções disciplinares. Mas pode optar por assumir a sua identidade e
estará igualmente protegido pela lei. Outros casos em que a denúncia é
obrigatória têm que ver com a segurança de menores: temos de denunciar
situações que ponham em causa a vida, o bem-estar ou a liberdade de um menor.
Não se iniba de denunciar um
crime
É natural que se hesite antes de
se tomar uma decisão desta envergadura, que pode trazer consequências para nós
e para os outros. Algumas até bastante perigosas: se testemunharmos tráfico de
estupefacientes ou atividades de uma associação criminosa, podemos estar em
risco, mesmo sabendo que o anonimato é garantido para as denúncias deste tipo
de crimes, se essa for a vontade do denunciante. Ter medo de represálias, ainda
mais nestes casos, é humano. Tal como ter vergonha, como é o caso em que
tenhamos de denunciar violência doméstica, violência sexual, ou crimes
relacionados com estes.
Outro fator importante de
inibição é o receio de as autoridades não fazerem, ou não poderem fazer, nada
no imediato. Crimes cujas provas são morosas ou difíceis de obter, como a
corrupção ou a negligência médica, podem ser exemplos de processos complexos.
Mas o mais importante talvez seja
mesmo o receio de, acidentalmente ou não, a identidade do denunciante poder ser
revelada e expô-lo a vários riscos.
O denunciante anónimo não pode
acompanhar o processo – fica, portanto, sem saber o destino que teve a sua
denúncia –, mas isso não o deve demover. Se a identidade do denunciante for
revelada a tempo de ele ser ouvido no processo, deve ser inquirido como
testemunha.
Estes últimos argumentos podem
demover qualquer cidadão de se chegar à frente. Mas existe uma lei, publicada
na sequência da referida Nova Diretiva Europeia de Proteção dos Denunciantes,
cujo objetivo é reforçar a sua proteção. Foi transposta para o ordenamento jurídico
nacional em dezembro de 2021 e entrou em vigor no dia 20 de junho. Apesar da
variedade de crimes passíveis de denúncia que compreende, ficou-se pelos
“mínimos”. Em traços gerais, só abrange as violações do direito comunitário, e
deveria ter abarcado todas as violações da lei, fossem nacionais ou
comunitárias. Além disso, só está protegido quem denuncie infrações com
fundamento em informações obtidas no âmbito da sua atividade profissional,
independentemente da natureza da atividade e do setor. Por isso, todos aqueles que denunciem crimes fora da sua atividade
profissional ficam excluídos de proteção especial, o que é inaceitável.
Entendemos que as denúncias
anónimas não devem, por si só, ser premiadas, mas as que são fundadas e
conscientes devem ser bem acolhidas e protegidas. É dever do Estado proteger
quem denuncia de forma responsável e corajosa.
A quem nos devemos dirigir, se
optarmos pelo anonimato?
Há, pelo menos, quatro entidades
diferentes a que pode recorrer. Pode fazer a denúncia verbalmente (por telefone
ou presencial) ou online.
A denúncia pode ser feita ao
Ministério Público, ou a qualquer das seguintes autoridades: Polícia Judiciária
(PJ), Polícia de Segurança Pública (PSP) ou a Guarda Nacional Republicana
(GNR). Em situações de urgência, é mais simples contactar o 112. A PJ
disponibiliza, online, um link direto para a denúncia anónima. Para branqueamento ou financiamento de terrorismo, em
alternativa, pode recorrer a um e-mail específico. Para poder reportar a sua denúncia à PSP, aceda ao site da Polícia de Segurança Pública.
Para contactar a GNR, consulte esta lista de contactos.
Certos tipos de crimes, como o
auxílio à imigração ilegal, podem ser denunciados ao Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF). Outros, como os crimes sexuais, podem ser remetidos às
delegações do Instituto Nacional de Medicina Legal e Ciências Forenses, gabinetes
médico-legais e hospitais onde haja peritos médico-legais.
As autoridades devem receber
todas as denúncias que lhes sejam apresentadas, mesmo que o crime não tenha
sido cometido na sua área territorial ou não seja da sua competência, e
dar-lhes seguimento.
Como podemos denunciar?
Em caso de denúncia anónima, só
há lugar à abertura de inquérito se dela se retirarem indícios sérios e
objetivos da prática de crime. Caso contrário, as autoridades arquivam-no. Mas,
mesmo que desconheça quem foi o autor, pode e deve denunciar. O que deve
apresentar para fazer uma denúncia?
● Recolha a informação relacionada
com a ocorrência, como a identidade e as características dos eventuais
suspeitos, e os meios utilizados.
● Registe o dia, a hora, o local e
as circunstâncias de forma tão precisa quanto possível. Identifique o(s)
suspeito(s) (se se souber) e as testemunhas (se houver) e outros meios de
prova. As denúncias podem ser apresentadas mesmo que não se saiba quem praticou
o crime.
● Deixe intacto o local onde poderá
ter ocorrido o crime. Não altere nada no espaço físico onde ocorreu o crime nem
utilize nada de lá e impeça, se possível, que outros o façam.
● Ter em posse os vários elementos
que confirmam o crime, e preservá-los, pode servir para a proteção, em última
análise, do próprio denunciante. Esses elementos vão sustentar os factos
comunicados às autoridades.
E se a denúncia for falsa?
A denúncia é um ato de cidadania,
como dissemos. Por isso, não pode, nem deve, ser usada para incriminar alguém
injustamente, ou por acerto de contas, vingança ou ressentimento. A lei, aliás,
prevê sanções para quem o fizer.
A lei criminaliza as denúncias
caluniosas, seja porque o visado não cometeu a infração, seja porque esta
simplesmente não ocorreu. Ou, ainda, porque o visado não figurava entre os
participantes do crime, se ele tiver acontecido. Não é, pois, irrelevante
apresentar denúncia sem fundamentos.
Quem denunciar alguém
injustamente, com intenção, sujeita-se a eventual procedimento criminal,
punível com pena de prisão até três anos ou com pena de multa. Se o meio
utilizado apresentar, alterar ou desvirtuar o meio de prova, a pena de prisão
pode ir até aos cinco anos. Se daí resultar mesmo a privação de liberdade do
ofendido, o falso denunciante pode ser punido com pena de prisão de um a oito
anos.
Ricardo Nabais e Alda Mota
Fontes: DECO
Ver também: Como denunciar crimes online sem ter de ir à esquadra